Este blogue está parado há uns dias porque ainda não encontrei uma forma que me pareça a mais acertada para abordar este assunto. Por outro lado, parece que já tudo foi dito sobre a tragédia de que se fala.
Também é verdade que acidentes acontecem a toda a hora. Todos os dias há mães a perderem filhos. Todos os dias há crianças a morrerem nas camas dos hospitais ou em situações dramáticas. Mas, tal como tudo na vida, quando toca a alguém que nos é familiar ou, neste caso, que nos "entra todos os dias pela casa a dentro", vivemos estes acontecimentos de forma mais próxima e sofremos com eles.
Não consigo sequer imaginar o que seja que a Judite de Sousa está a sentir e a dimensão da sua dor. Não consigo vislumbrar onde irá buscar forças para a ultrapassar e para reaprender a viver com esta perda avassaladora.
Este assunto é-me particularmente sensível porque vivi de perto uma história semelhante. Há cerca de vinte anos (meu Deus, já passaram vinte anos?!) vi partir um primo cedo demais. Filho da minha tia, irmã do meu pai, que, por razões que não vêm agora ao caso, cuidou de mim quando tinha apenas seis meses. Pouco tempo depois de me acolher, deu à luz o H., o meu primo que cresceu comigo e que me "emprestou" a mãe por uns tempos.
Guardo muitas recordações da nossa infância. Como daquela vez em que levámos um raspanete do avô por distribuirmos pauzinhos a arder pela casa (santa ingenuidade); quando fazíamos mini-broas, transformando as tampas das garrafas em pequenas formas, onde enfiávamos o resto da massa do pão que a minha tia deixava propositadamente no fundo do alguidar; quando disputávamos o resto dos pêssegos em calda que a minha prima partia para a salada de frutas do almoço de domingo; quando subíamos ao sótão e por ali passávamos a tarde a virar os baús do avesso, até que nos obrigassem a descer; quando eu me oferecia para lhe fazer os TPC e escrevia dez vezes cada erro, enquanto me divertia a imitar a letra dele; ou quando, ao pequeno-almoço, ficávamos tempos infinitos a molhar o pão no leite e a ver as manchas da manteiga a boiar à superfície.
Numa tarde de verão, deveria ter uns 21 anos, chegou um telefonema a avisar que o H. ia ser internado de urgência. Em pouco mais de seis meses perdeu dezenas de quilos, o cabelo, e ficou praticamente irreconhecível.
Lembro-me dos dias em que o ia visitar ao hospital. Levava um nó no estômago do tamanho do mundo. Sentava-me ao lado dele na cama e recordo a angústia de já não saber mais o que inventar para tema de conversa. Nos momentos em que se tornava demasiado penoso, arranjava forma de vir até ao corredor para que ele - nem ninguém - me visse chorar. Foi duro e sei que pode passar uma vida que estas memórias nunca sairão da minha cabeça. Assim como a voz dele que ainda consigo recordar sem grande esforço.
O H. partiu em Novembro. Numa noite gélida de inverno, fizemos o caminho de carro até à aldeia num silêncio tenebroso. À chegada, a rua, que tantas vezes subimos e descemos juntos a correr, estava invulgarmente cheia de carros. Lembro-me de abrir a porta, sentir o ar glacial na cara e ver as luzes das janelas da casa a brilhar no meio da escuridão, de onde se ouviam gritos lancinantes. Subi as escadas e a dor que trazia comigo tornou-se de tal forma insuportável que me levou a vomitar. O que se seguiu foram, talvez, os momentos mais tristes da minha vida.
O H. partiu em Novembro. Numa noite gélida de inverno, fizemos o caminho de carro até à aldeia num silêncio tenebroso. À chegada, a rua, que tantas vezes subimos e descemos juntos a correr, estava invulgarmente cheia de carros. Lembro-me de abrir a porta, sentir o ar glacial na cara e ver as luzes das janelas da casa a brilhar no meio da escuridão, de onde se ouviam gritos lancinantes. Subi as escadas e a dor que trazia comigo tornou-se de tal forma insuportável que me levou a vomitar. O que se seguiu foram, talvez, os momentos mais tristes da minha vida.
Mas no meio disto tudo, o que sempre me admirou foi a força da minha tia. A garra com que conduz a vida, a forma corajosa como lidou e ultrapassou esta infelicidade. E ainda hoje, quase vinte anos depois, continuo a surpreender-me com a dimensão da sua coragem e resiliência. Com a firmeza com que se mantém erguida, ainda que a vida a obrigue a carregar o peso de uma dor que nunca terá fim.
E é também por isto que lhe presto aqui a minha homenagem. Porque, para mim, ela será sempre motivo de orgulho e, seguramente, a minha maior referência. Porque apesar de, infelizmente, o mundo estar cheio de "Judites", é na minha tia que encontro a maior prova de coragem, por continuar a resistir heroicamente à mais dura e terrível privação que um ser humano alguma vez pode sofrer.
Um dos textos mais lindos que escreveste... Deixaste-me de lágrima no olho...
ResponderEliminarNenhuma mãe devia de passar por este sofrimento...
:-)
EliminarOh céus..... que dor....
ResponderEliminar:(
Grande homenagem que fizeste à tua tia. Um abraço
ResponderEliminarQ texto tão desçritivo...quase vos consigo ver a brincar...lindo.
ResponderEliminarpois eu que de hipocrita n tenho nada, tenho pena da judite como de qq mae e pai q perdem um filho.. n me faz nem mais nem menos impressao por ser uma mulher da televisao ..
ResponderEliminarjá me faleceram pessoas queridas, e se custa quando somos chegados aos avós e tios,nem imagino um primo, ou neste caso, quase irmão! Só te posso desejar força e um abracinho bem forte! Sei que nunca irá passar, mas há dias melhores!!!
ResponderEliminarUm beijinho muito grande, de quem ficou com um nó na garganta só de ler ***