Cenário: Fim de semana em casa
dos avós. Baby Caco adormece num quarto que não é o dele.
4h37 – Acorda a chorar. Tento
acalmá-lo. Não resulta. Percebe que está num sítio diferente. Olha atentamente
para todo o lado. A luz do candeeiro da mesa de cabeceira é bem mais forte do
que a luz de presença a que está habituado. Fica deslumbrado com a parafernália
de objectos novos e decide encarnar o espírito do Robinson Crusoe.
5h04 – A odisseia continua. Tudo
é razão para se distrair. Ponho uma fralda em cima do candeeiro. Assim está
melhor. A luz ficou mais ténue, mas ainda suficientemente forte para que uma
simples almofadada lhe provoque o mesmo fascínio que uma tartaruga gigante das
Galápagos.
Embalo-o na esperança que adormeça.
Nem pensar. Está mais desperto do que um caloiro em noite da queima. Ponho-o na
cama com os bonecos que costumo deixar cá ao fim de semana. Fica histérico e
percebo que a ideia foi péssima. Só os vê de 15 em 15 dias, por isso deve ter
imensa coisa para contar.
Volta para o meu colo. O pijama é
de cetim e ele escorrega por mim abaixo. Não há nada a fazer. Deito-o, desta
vez, na minha cama. Insiste em levantar-se. Descobre o interruptor em forma de
pêra e não o larga. Tem um fascínio por tudo o que se assemelhe a pêndulos. Em casa é igual. Tento
escondê-lo com uma almofada mas ele percebe. É ainda pior.
5h22 - Continua agarrado à cabeceira da cama a mexer em tudo
o que as mãos conseguem alcançar. A Volta ao Mundo em 80 dias é coisa de
meninos, comparada com o que tem para explorar.Cai. Levanta-se. Volta a cair.
Volta a levantar-se. Cai outra vez. Volta a pôr-se de pé.
5h34 – Cheira-me a queimado. É o
raio da fralda que está no candeeiro. Tiro-a e enfio-o debaixo da cama. Ele
percebe e subitamente descobre que há toda uma galáxia por descobrir, também
debaixo da cama. A luminosidade não melhora. Empurro o candeeiro ainda mais para
o fundo. Tenho sono. Muito sono. Ele não desarma. Continua a gincana nocturna.
Agora a raspar os dentes no metal da cabeceira. Ao menos consola-se.
6h02 - Continua a raspar. E se
arranca a tinta e se engasga? Forço-o a descer. Não adianta. Tem de se levantar.
Nem que seja a última coisa que faça na vida, mas tem de se levantar. Preciso
ir ao wc, mas se o deixo sozinho ele berra. Não aguento. Tenho mesmo de ir. Sento-o na
cama dele e vou. Oiço-o a gritar. Faço o que tenho a fazer à velocidade da luz
e regresso num sprint com as calças na
mão. Ali está ele, sentado na cama, de lágrima no olho, a fazer beicinho. Quando
me vê, levanta-se e retoma o ar de
explorador.
6h23 – Decido ignorá-lo. Finjo
que estou a dormir mas vejo-o de olhos escancarados a olhar para mim fixamente.
Faço-me de morta. E ele parado, a olhar. Como se estivesse a confirmar se estou
ou não a fingir.
6h31 – Acredita que estou realmente a dormir e solta
um berro agoniante. Desata a chorar. Pego nele. Tento adormecê-lo. E ele a escorregar.
O raio do cetim não perdoa. Tira a chupeta da boca e começa a fazer
malabarismos, como se dissesse: “olha mãe, agora só com um dedo, olha, agora de
uma mão para a outra sem deixar cair, olha mãe, agora presa por uma unha…”.
Berros. A chupeta caiu. Tenho de ir ao wc lavá-la, mas como? Vai voltar a gritar.
Desisto. Rezo para que estes micróbios sejam inofensivos e que a criatura não
me apanhe uma infecção nos próximos 3 anos porque vou sempre achar que foi
disto.
7h01 – Deito-o comigo. Olha-me
nos olhos enquanto me explora a fronha. Nada o fascina mais do que o interior
das minhas narinas. Mentira. O interruptor sim, mas agora já está escondido. Descobre
sítios no interior da minha boca que eu nem sabia que existiam. Puxa-me as
pálpebras e enfia-me os dedos pelo globo ocular, enquanto me pressiona a glote.
Percebo que lhe devia ter cortado as unhas. Nem me mexo. Há-de cansar-se.
7h23 – Nova investida para trepar
na cabeceira da cama. Estou em
desespero total, a pensar quando é que isto vai acabar.Tenho sono. Muito sono.
7h41 – Continua de pé. Parece
mais calmo. Esfrega os olhos. Pego-o ao colo a ver se adormece. Consigo mantê-lo
encostado a mim, mas com a cabeça virada para o espelho. Fica quieto e eu
sempre com aquele embalo monocórdico a ver se ele se rende. Vou controlando
através do espelho. Não se mexe, mas continua de vigia. Não vá alguém assaltar o
acampamento em que, entretanto, aquele quarto se transformou.
7h50 - Olhos esbugalhados. E eu
nem mexo. O braço começa a dar sinais de que não vai aguentar
aqueles 10 kilos de gente por muito mais tempo. Mas tem de ser. Agora não posso
mexer. Ele encosta a cabeça mais perto. Primeiro sinal de rendição. Rezo aos
anjinhos. Continua sereno mas acordado. O meu braço está dormente. Acho que não
vou aguentar mais. E se perco as forças e o deixo cair?
8h06 - Cada segundo parece uma
hora. O braço já treme e eu de olhos fechados a tentar ir buscar forças não sei
bem onde. Ele boceja. A chupeta cai mas
eu apanho-a a tempo e aproveito aquele momento para me sentar na cama e mudar
de posição. Alívio. Continua encostado a mim, de olho aberto. Colo o meu rosto
no dele e ficamos ali em silêncio. Cabeça dele a deslizar. Beijo-lhe a nuca
morna. Ele quieto e eu com os lábios encostados. A respiração cada vez mais
lenta e profunda. O despertador do vizinho toca e oiço o barulho dos aviões a
descolar. E eu a pensar que bom que não vou lá dentro. Deus queira que não caia
nenhum agora. Não vinha nada a calhar.
8h22 – Fechou os olhos. Parece
que é desta. Sim. É desta.
Nota: Este lettering é diferente porque o texto foi escrito no computador do meu pai que, vá-se lá a saber porquê, não me permite publicar posts. De maneiras que agora fiz copy/paste e não há forma de conseguir alterar isto...