1 - As noites de inverno em que o meu pai me punha Vick Vaporub e eu achava que nada de mal me podia acontecer na vida enquanto tivesse as mãos dele por perto. A minha cama tinha gavetões grandes e uma colcha de crochet feita pela minha mãe. No chão, havia um pequeno piano vermelho com um autocolante do Pluto. Era o barulho dessas teclas que me denunciava sempre que, por medo do escuro, fugia para a cama da minha irmã durante a noite.
2 - O dia em que tocaram à campainha para virem buscar o cão que tínhamos encontrado na rua e há mais de 24 horas que assumíamos que era nosso.
3 - Os bolos da Dan Cake que a minha mãe costumava comprar. Gostava daquele que tinha uma cobertura com bocadinhos de amendoim. Ela nunca teve jeito para doces. Na verdade, nunca teve jeito para cozinhar. Lá em casa só havia desse bolo ou de iogurte. Mas fazia crochet muito bem.
4 - As brincadeiras no pátio do prédio durante o verão que parecia nunca acabar, com pistolas feitas de esferovite e os traços do jogo da macaca desenhados a giz. Ouvia-se "Amanhã de Manhã", das Doce, e víamos os Festivais da Canção. "Um, dó, li, tá, caramendolá....Tu és polícia e tu és ladrão". Era muito boa a saltar ao elástico naquele pátio gigantesco, mas que, aos olhos de hoje, mal cabem três carros.
5 - O dia em que mudei de casa e de cidade e percebi que afinal aquilo talvez não fosse uma coisa tão boa como o que me disseram.
6 - Os momentos na escola da minha mãe. Lembro-me de irmos de autocarro e de a ver descascar os ovos cozidos que levávamos para o almoço.
7 - Os "Jogos sem Fronteiras". A voz do Eládio Clímaco e da Ana Zanatti. E do Vasco Granja, ao sábado de manhã. Ainda hoje acho que a voz da Ana Zanatti faz mais efeito do que três Valdispert´s.
8 - Os iogurtes de baunilha da Yoplait. Parece que ainda estou a ver a imagem da pequena vagem no papel que envolvia a embalagem. Ficava a olhar para aquilo tempos infinitos porque nunca tinha visto nenhuma assim de verdade.
9 - A visita a casa da minha tia Ermelinda. Havia umas sebes no fundo das escadas que tinham o mesmo cheiro das sebes do cemitério, mas eu só gostava do cheiro das sebes em casa dela. A minha tia Ermelinda fazia doce de tomate, era alta e tinha uma voz alegre. A casa dela tinha uma porta grande, de ferro cor de rosa clarinho. Tenho uma fotografia tirada em frente a essa porta. Calças de boca de sino e uma máscara de cartolina presa na testa. Bochechas vermelhas. Acho que era Carnaval.
10 - Quando a minha mãe vestia uma saia em tecido de inverno, rodada, azul, pelo joelho, e eu achava que ela era linda.
11 - A espuma de barbear que eu e a minha irmã gastávamos no espelho redondo do quarto dos meus pais, colocado em cima da cama, e enfiávamos os bonecos da Heidi a fingir que estavam na neve. Os enterros dos grilos nos vasos da varanda.
12 - O barulho da casa da aldeia, quando acordava ao domingo de manhã e ficava quieta, dentro da cama, só a ouvir o burburinho na cozinha. As vozes da minha avó e da minha tia, o som do fogão a lenha, do sino lá fora, do ranger da porta de madeira, que tinha um trinco de ferro e dava para a rua.
13 - As mãos da minha avó a remexer a braseira. O avental. Novelos de meias em cima das pernas. "Já foste ao leite, Fernandina?".
14 - A coleção de "folhas queridinhas". Eram folhas de blocos pequenos, daqueles com bonequinhas amorosas da Mary Kay, coelhinhos fofinhos e coisas assim de meninas, normalmente cor de rosa e algumas até cheiravam bem. A minha folha preferida veio de casa da Filipa. Trouxe-a no dia em que fez uma festa de Carnaval. A casa era grande. Parecia um palácio. Tinha um quarto só para brincar e eu nunca tinha visto casas com quartos só para brincar. Nas traseiras, havia um jardim daqueles com sebes, que dá para andar ali pelo meio a correr, perdida nos vários caminhos. Estilo Alice no País das Maravilhas. Eu nunca tinha visto casas com sebes daquelas que fazem caminhos. Fui de palhaço, por isso tinha o nariz pintado com uma bola vermelha, feita com batom que a minha mãe nunca usava. Ao cheirar a folha, deixei a marca do nariz e nunca me perdoei por isso. A melhor folha da minha coleção tinha uma marca do meu nariz. Para sempre.
15 - A minha tia a aquecer-me as botas no fogão a lenha e eu sentada a ver. Nada de mal me podia acontecer na vida enquanto ela estivesse ali a aquecer as minhas botas.
16 - As reuniões da minha mãe, numa sala de aulas de um edifício grande, com ar senhorial e um aquecedor a gás. À entrada, tinha umas escadas cobertas com uma planta trepadeira, daquelas que dão umas flores roxas que parecem uns cachos de uvas, com um cheiro muito intenso mas bom. Bebíamos chá e havia pão com queijo. Gosto do sabor do queijo misturado com o chá. Eu ficava quieta, sentada numa das secretárias da sala, a jogar um jogo numa caixa de cartão que tinha uma tampa já muito gasta, com uns pauzinhos de madeira compridos, às cores. Acho que a ideia era empilhá-los.
17 - Os dias em que a minha prima ia dormir lá a casa. Dormia na minha cama e cheirava sempre muito bem. Era um cheiro que só ela tinha. Ainda hoje, podiam fechar-me os olhos que eu iria sempre reconhecer esse aroma nem que fosse no fim do mundo. A esta distância acho que era o cheiro natural dela, misturado com Nivea.
18 - Quando fui a Espanha com os meus pais comprar um careca. Trouxe o "standard", mas o meu coração ficou com o bebé careca chinês. Naquela noite, dormiu numa cama feita no meu quarto com uns lençóis pequeninos que tinham sido meus. No dia seguinte, quando acordei, ainda gostava mais dele. Isto só me acontecia quando era criança. Gostava sempre mais dos brinquedos no dia seguinte.
19 - O presépio feito com musgo de verdade. O rio era feito em papel de prata de maços de cigarros. Não sei de onde vinha. Em casa ninguém fumava. Havia uns cogumelos vermelhos pequeninos, com pintinhas brancas, que tinham um arame nas pontas para prender. Encontrei-os iguais à venda este ano e trouxe-os para casa, mesmo sabendo que não ia ter presépio para os enfiar.
20 - O gira-discos lá de casa que só tocava ao fim de semana. Às vezes sentava-me no chão, em frente das colunas, e fingia que sabia as letras das canções. Ficava horas a contemplar as capas dos LP´s e chorava às escondidas quando tocava a música das baleias do Roberto Carlos.
21 - Uma espécie de papel plastificado, colorido, que se colocava em frente à televisão a preto e branco para parecer que era a cores. Nunca fez esse efeito, mas na altura parecia uma boa ideia.
22 - Ver a minha irmã maquilhar-se. A protecção que sentia junto dela nas três semanas de verão que passávamos na colónia de férias não tinha preço. As mãos mais bonitas que conheço são as da minha irmã.
23 - O tempo que ficava com o meu primo a tentar decifrar os canais espanhóis que a televisão da aldeia apanhava pessimamente, mesmo sem antena. O ruído da tv e aquelas imagens difusas a preto e branco, sempre a tremer. Era o "baile das formigas" que só parava para vermos a "Casa na Pradaria" ou o "Homem Alântida".
24 - O dia em que o meu pai chegou de viagem e foi à minha cama mostrar-me o ET que me trouxe. Tinha uma luz que acendia na ponta do dedo. Gostei quase tanto como quando ganhei a Joana que fazia bolinhas com a boca.
25 - O meu avô a entrar em casa com o cão chamado "Fadista". No verão, à entrada da porta, havia aquelas fitas de plástico, com muitas cores. Eu gostava de passar para lá e para cá, repetidamente, e sentir as fitas a ficarem presas no cabelo. O meu avô era um homem bom, mas matava porcos. Nem por isso o amava menos.
Era capaz de estar o dia todo nisto.
Nota: A menina da foto não sou eu, mas quem me conheceu nessa idade sabe que até podia.