Depois do que me aconteceu esta manhã, venha o que vier que este ano só me pode correr bem. Ora atentem e vejam se isto não é extraordinário:
No trajecto do metro para o escritório, e no meio desta chuva de merda, reparo que alguém, a cerca de 50 metros à minha frente (sim, para já, ainda consigo ver a esta distância) e do outro lado da estrada que eu me preparava para atravessar, deixa cair ao chão, sem se aperceber, aquilo que me parecia ser uma espécie de caixinha.
Vou avançando até ao local para ver o que era, não tendo bem a certeza da pessoa que a teria deixado cair, pois tinha visto duas ou três por essa altura, naquele local. Confirmo que era uma caixinha de comprimidos, vazia.
Olhei para trás e vejo que uma das senhoras, que me parecia ser uma potencial proprietária, já tinha atravessado a rua e seguia a passos rápidos no sentido contrário ao meu. Olhei para a caixa outra vez e pensei: "Mas vou agora atrás do raio da velha, que nem sequer sei se é a dona disto, debaixo desta chuva de merda, quando até já estou atrasada, por causa de uma caixa de comprimidos que não vale um chavelho e ainda por cima vazia?!? Não, não vou. Não faz sentido".
Fico ali mais uns segundos a olhar para a caixa e depois para a velha, que ia ficando cada vez mais afastada, depois para a caixa outra vez. Nisto, reparo que na tampa estava gravada uma imagem de Nossa Senhora e - mesmo não sendo muito católica - aquilo fez-me ponderar a possibilidade de ser um objecto com valor sentimental. Fico ali num "vai e não vai". Decido ir.
Raios. Apanho o semáforo vermelho e a velha já está do outro lado da rua. Ansiosa, espero que fique verde, quase a deixar de a ver. Agora que me tinha finalmente decidido, não podia perdê-la de jeito nenhum. Corri debaixo daquela chuva - sim, de merda - enquanto gritava: "Senhora!!! Senhora! Senhora!!!" na esperança que olhasse para trás. Claro está que não olhou e eu ia-me sentindo um misto de Madre Teresa de Calcutá e de TTD (trenga todos os dias) porque, possivelmente, quando chegasse com a conversa da caixa ela olharia para mim com aquele olhar de quem pensa que vai ser assaltada e diria para eu ir para casa tomar a medicação que aquela conversa não era para ela.
O que aconteceu foi surpreendente. Assim que vê a caixa, foi como quem viu a Nossa Senhora em cima da azinheira. Arregalou os olhos de espanto e exclamou: "Meu Deus, essa é a caixa de prata onde guardo o meu terço!!!!! O terço que benzi em Fátima quando o meu filho de 39 anos morreu!!! Mas onde está o terço??! Onde está o terço, meu Deus??!!?, gritava aflita.
Disse-lhe que tinha visto apenas a caixa vazia e seguimos para o local onde a tinha encontrado. Ela continuava em pânico e não parava de agradecer, enquanto dizia: "Por favor, menina, encontre-me este terço... É do meu filho que morreu... Tinha 39 anos ...Eu não posso perdê-lo...Você é mais nova, vê melhor do que eu... encontre-o, por favor...".
Naquele momento, percebi que podia chegar a noite que eu não sairia dali sem o descobrir. A chuva continuava a cair, as pessoas circulavam freneticamente com os guarda-chuvas no meio de nós e eu ali fiquei, a andar de um lado para o outro, estilo barata tonta, enquanto olhava para o chão com atenção cirúrgica.
Passaram-se uns bons cinco minutos. Perguntei-lhe onde trazia a caixa, para tentar perceber se o terço poderia estar no bolso ou caído dentro da carteira. Disse-me que o trazia na mão. Achei estranho trazer um terço na mão, mas, se calhar, foi a forma que encontrou de se sentir mais perto dele. Não sei.
O certo é que, subitamente, quando já estava quase a desistir, encontro-o nas pedras da calçada, num sítio onde me pareceu que já tinha olhado dezenas de vezes. Era da mesma cor das pedras, o que dificultava ainda mais a missão. Mas encontrei. E aquilo, para mim, foi praticamente o mesmo que encontrar a própria da Santa.
Não preciso dizer-vos a reação. Abraçou-me, eufórica, como quem ganha anos de vida. Sorria de felicidade, enquanto dizia: "Que nunca lhe aconteça o que me aconteceu... Ninguém merece perder um filho. Obrigada... Obrigada ... Muito obrigada...".
Tive vontade de a convidar a tomar um café, mas já estava atrasada e se calhar até era despropositado. Despedi-me daquela estranha - que, por momentos, até me pareceu uma amiga de sempre - e segui em frente.
Que tenham um bom 2016. O meu já está abençoado.