sexta-feira, 27 de julho de 2018

Sobre as ilusões.


Quando eu tinha 8 anos, por razões profissionais, os meus pais tiveram de mudar de cidade. Não me recordo da primeira vez que mo disseram, nem de que forma foi feito o "comunicado", mas a vaga ideia que tenho é que terá sido uma coisa num tom informal e descontraído. 

Recordo-me da mudança ter sido encarada como uma coisa boa. Vivíamos num apartamento de um prédio com três andares que tinha um pátio que me parecia enorme, mas que, alguns anos depois, quando lá regressei, já adulta, percebi que o olhar das crianças vê a realidade com mais dez dioptrias. 

Um pátio onde dava para jogar ao elástico, à macaca, às escondidas, aos polícias e ladrões, fazer corridas de caricas, brincar ao "Espaço 1999" com armas feitas em esferovite, jogar à bola e, ainda por cima, tudo ao mesmo tempo; na realidade, não passava de um sítio onde cabiam cinco carros, sendo que um deles teria de ser um Mini e os condutores deveriam ter muita perícia para estacionar.

Os "mantras" que acompanharam a fase da pré-mudança eram mais ou menos estes:"vamos para uma casa maior", "tem um jardim para brincares", "fica perto da praia", "vais para uma escola grande, fazer amigos novos" ou "vais ter um quarto só para ti". Era uma alegria. Íamos ter uma vida nova, num lugar novo. Íamos para um sítio melhor. Íamos ser ainda mais felizes.

A euforia da mudança começou a palpitar na minha pequena cabeça e cada dia que passava, a sensação de ansiedade ganhava cada vez mais força. Todos os meus amigos do prédio já sabiam, os pais dos meus amigos também já sabiam e, de certa forma, eu sentia que era a sortuda do prédio, porque tinha um novo mundo à minha espera, enquanto os meus amigos iam continuar ali a jogar à macaca, a saltar ao elástico e a gozar com os vestidos da Mónica do 2º dir.: "Azul e verde, escarra na parede".   

Finalmente o dia chegou e com ele o camião das mudanças. As loiças embaladas nas páginas do "Jornal de Notícias" e colocadas dentro de caixas de cartão. Os discos de vinil, a aparelhagem, os tapetes, as cadeiras, os jarrões da minha mãe, a panela de pressão da Silampos, as enciclopédias, os livros das Selecções do Reader´s Digest, caixas e caixotes, tudo aos ombros de uns homens fortes que eu via saírem suados pela porta do prédio, sentada na berma do pátio. O tal que na altura era grande e encolheu com o tempo.

Assisti a tudo cá de fora, porque naturalmente uma criança não podia ficar dentro do apartamento com tanta azáfama a decorrer. Fiquei ali, passivamente, a assistir aos objectos a serem levados para dentro de um camião que, tal como o pátio, também me parecia gigantesco. As caixas amontoavam-se, a mobília desmontada, tudo preparado para seguir para "a casa maior, com um jardim e perto da praia".

Quando me autorizaram, subi os três andares de escadas. Não havia elevador. O corrimão era verde e as paredes interiores do prédio eram forradas com aqueles bocadinhos de vidros todos estilhaçados de cores e formatos diferentes que eu tantas horas ficava a admirar. Nenhum centímetro de parede era igual ao outro, portanto, ao longo dos 6 anos que ali vivi,  enquanto subia e descia os três andares via milhões de pedrinhas de vidro coloridas, o suficiente para muitos minutos de encantamento. 

Fui a casa pela última vez. A porta estava aberta e ao fundo do corredor havia apenas o telefone preto - daqueles onde marcávamos os números com o dedo, numa roda de plástico transparente que girava lentamente e fazia um barulho que ainda hoje recordo -  pousado na alcatifa bege do hall de entrada.

O apartamento estava vazio. Faltava trazer uma ou duas coisas e a mim coube-me o peixinho vermelho num saco de plástico, fechado com um nó. Desci as escadas com o saco na mão e no pátio já estava o carro do meu pai, carregado com malas, à nossa espera. Os meus amigos estavam a brincar e foi nesse preciso momento que percebi que, afinal, as crianças não podem acreditar em tudo o que os adultos dizem. Não que estivesse revoltada com os meus pais. Estava mais chateada comigo por não ter antecipado a angústia que estava a sentir. Por ter valorizado apenas o que ia "ganhar" e não imaginar, por um segundo que fosse, o que ia perder. 

Disse adeus aos meus amigos, já dentro do carro, como se voltasse no dia seguinte, à hora do costume, para saltarmos à macaca ou tocarmos às campainhas dos vizinhos e fugirmos a seguir, a correr no meio das gargalhadas. Pela reacção deles, desconfio que fingiram o mesmo.

(...)

Ontem foi o Dia Mundial dos Avós. Ao fim do dia, disse ao meu filho que íamos ligar à avó B. ao avô F. e à avó A.. Ele perguntou porque não ligávamos ao avô H. Recordei-lhe que o avô H. estava no céu e lá não havia telefone, mas que ele estava bem, com o avô A., tal como lhe tinha dito, pela primeira vez, há duas semanas atrás. Ele perguntou o que estavam a fazer lá. Eu disse que estavam a brincar, felizes e a pensar em nós.

Ele não disse nada. Ficou em silêncio a olhar para a televisão, numa expressão pensativa e olhar vago. Minutos depois, perguntou: "Quando ficarmos todos velhinhos o que acontece, mamã?" Eu disse que nunca ficávamos todos velhinhos ao mesmo tempo, que demora muito tempo até ficarmos velhinhos, mas que quando isso acontecer, vamos para o céu, tal como o avô H. e o avô A.. 

Silêncio. Semblante sério e carregado. Talvez não fosse bem assim. Talvez não fosse tudo tão bom no céu como lhe fiz crer há umas semanas atrás. Talvez não estivessem a brincar. Afinal, nem sequer havia telefone. 

Tentei conter as lágrimas, mas naquele momento, ao olhar para ele, só conseguia ver a angústia da  menina do pátio, a segurar o saco de plástico com o peixinho vermelho.  

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Este é o meu Pai.


Este é o meu Pai. O meu maior orgulho. O Homem com as Mãos mais Bonitas do Mundo. 

O meu pai morreu-me e não consigo escrever uma linha de jeito desde o dia que soube o que iria acontecer. "O pior cenário será um mês, semanas... e o melhor, um ano...(pausa)... dois...", disse o senhor da bata branca, enquanto esticava os ombros até ao limite do possível.

Foram 383 dias.

Ainda não consigo escrever uma linha de jeito, mas o orgulho que tenho nele continua a crescer desmesuradamente... ali, taco a taco com a linha da saudade. Não sei quem vai ganhar, mas isso agora não importa. Enquanto isso, é urgente descobrir o que realmente importa.

O mesmo orgulho com que o levei para a residência, onde terminou os dias, e o conduzi - ainda que desajeitadamente - na cadeira de rodas, pelos novos corredores que vieram a ser a sua última casa. O mesmo orgulho com que saímos, pela primeira vez, do elevador e queria que toda a gente o conhecesse - mesmo com menos 20 quilos, cabelo raro, e os ossos a rebentarem-lhe a pele - , como se alguém ainda pudesse fazer algo por ele, ou como se isso me desse garantias de que teria mais atenção e carinho.

- "Dona Emília, dona Emília!! Venha cá! Este é que é o meu Pai!", gritei.

Ela aproximou-se, sorriu e cumprimentou-o. Fingimos as duas não reparar nas lágrimas que lhe corriam.

(...)

- "Sabe, as mãos do Homem ainda não chegam a todo o lado". 

Este eufemismo a latejar na minha cabeça. Eternamente. Foi a forma que o médico encontrou de lhe ditar a sentença. 

Precisamente ao Homem com as Mãos mais Bonitas do Mundo.