terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Se calhar estava certa.

 
Passei grande parte da infância a brincar num pátio. Era um pátio grande onde cabiam cinco carros e ainda dava para jogar à macaca, saltar ao elástico e brincar aos polícias e ladrões. Tudo ao mesmo tempo.
 
Naquela altura, o mundo dividia-se em dois grupos: nós, as crianças, e eles, os adultos. A pressa para crescer era muita. "E quando passar o verão, já vou para o ciclo", "e quando vier o próximo inverno já faço dez anos", "e no Natal já vou pedir umas botas de cano alto como as da Mónica do 5º B". 
 
Eu era do grupo do Pedro de cabelo preto, da Raquel irmã do Paulo, da Cristina que a mãe trabalhava na cantina, do Zé das sardas e do Paulo que tinha em casa um quadro do menino a chorar e que a mãe usava aqueles óculos com lentes garrafais que nunca nos deixavam ter a certeza se era bem para nós que estava a olhar.
 
Eles, os adultos, eram a D. Fátima, a mãe da Ângela, a D. Mena que falava alto, a D. Constança que morava no apartamento em frente ao nosso e, nunca soube bem porquê, não falava com a minha mãe, e a D. Paula que estava sempre à janela com o rádio ligado. Era um prédio de mulheres, achava eu. Pelo menos, é delas que me lembro.
 
E no meu mundo eu pensava que quando pertencesse aos deles, o dos adultos, o meu nome não ficava bem antecedido de Dona. E dizia em voz alta só para ver a sonoridade. Repetia outra vez e fingia que aquelas palavras saíam da boca de outra pessoa. Se calhar, para ganhar distanciamento. E de todas as vezes achava que o meu nome nunca ficaria bem com a Dona atrás. Se calhar, não fui feita para ser adulta.
 
Hoje também tenho um pátio. Vou lá estender roupa e aguardo que o condomínio tenha dinheiro para fazermos as obras necessárias por causa das infiltrações. É que o pátio é também o tecto da garagem e por isso, o usufruto é meu, mas se houver merda, pagam todos. Tudo o que se quer, portanto.
 
Neste pátio não há lugar para carros, mas dá para desenhar a macaca com giz ou até saltar ao elástico. A única chatice é que agora já estou no outro grupo: o dos adultos. Daqui, o pátio antigo já me parece pequeno, na despensa já tenho algumas botas de cano alto e também já não tenho pressa que o tempo passe. Ainda assim, há coisas que nunca mudam e continuo a achar que o meu nome não fica bem precedido de Dona.
 
Às tantas, estava certa. Se calhar não fui feita para crescer.

11 comentários:

  1. Opá, que memórias me trouxe. Também passei horas um pátio, todo à volta do prédio e só com carros uma vez por ano (quando faziam a manutenção das garagens, era sempre uma semana aborrecida)...e as Donas... menos a do R/C - A que estava sempre a queixar-se do barulho que fazíamos. essa não era Dona. memórias... Dona Augite... tb não gosto! :)

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  2. Eu nem tenho ideia de alguma vez alguém me chamar Dona. Normalmente sou a mãe R. ou a tal R. como me chama no trabalho. Ou então simplesmente R.

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  3. É isto!
    "Às tantas, estava certa. Se calhar não fui feita para crescer.".
    Somos dois!

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  4. É verdade que este post desperta memórias. Fazer o teste do Dona atrás do nosso próprio nome é uma coisa da qual já me tinha esquecido, e soava sempre mal - o meu nome era demasiado jovem para esse hábito antigo. Ainda é. Jovem. Mas não demasiado.

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    1. Ai tu também fazias isto, Mexicola?:-)

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    2. Sim, mas deu para perceber que também há diferenças grandes entre a infância na cidade/vila e no campo. Para brincar com alguém os meus pais tinham que me levar de carro. =) É uma das diferenças. Tenho que escrever um post inspirado neste chamado "Se calhar estava certa no campo" =)

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  5. As memórias de infância... tão boas!

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Deita cá para fora!