terça-feira, 22 de abril de 2014

O dia em que descobri que os adultos também mentem.

 
Passei uma infância feliz, em Vila Real de Trás-os-Montes. Estaria a completar oito anos quando chegou a notícia de que o meu pai ia ser transferido para o Porto. A mudança foi-nos comunicada de forma animadora, com aquela conversa que se costuma apresentar às crianças: "vamos para uma casa maior, com jardim, vais ter um quarto só para ti, para decorar à tua vontade, vais para uma escola maior, fazer amigos novos..." e outras balelas deste calibre. O certo é que funcionou e os dias que antecederam a mudança foram vividos com entusiasmo e até alguma ansiedade.
 
Lembro-me de ter ido ver algumas casas com os meus pais nas férias de Verão (que pareciam sempre não ter fim) e ter ficado encantada com uma casa em particular que tinha um quarto forrado a papel com ursinhos. Eu nunca tinha visto um papel de parede com ursinhos e aqueles pareceram-me absolutamente encantadores. Era ali que eu queria viver. Eu sabia que só podia ser feliz num quarto com um papel de parede assim.
 
Mas, para azar meu, não foi essa que nos calhou. Não importava. Afinal, íamos para uma casa maior, com um jardim para brincar e fazer amigos novos.
 
Chegou o tão aguardado dia e recordo-me de ver uns homens a transportarem a mobília para a carrinha das mudanças, enquanto o apartamento ia ficando cada vez mais vazio, até só sobrar um telefone preto pousado, sozinho, no canto do hall forrado a alcatifa. Era o nosso telefone. O que tinha o número que ainda hoje sei de cor: 259 346 56.  
 
Saí de casa com o meu peixe cor de laranja dentro de um saco e com os amigos no pátio do prédio a assistirem às movimentações dos móveis, das caixas e da parafernália de tralhas que envolve uma mudança. O mesmo pátio onde jogávamos à macaca, ao elástico, fazíamos corridas com caricas e onde tantas vezes decidimos quem era o polícia ou o ladrão.
 
Lembro-me que entrei no carro e acho que foi essa a primeira vez que soube o que era angústia. Tinha oito anos. Foi também aí que percebi que, afinal, eu não queria uma casa maior, nem amigos novos. Eu queria ficar ali. A jogar à macaca. A brincar no pátio nas tardes de Verão, até a minha mãe vir à janela, vinte vezes, chamar-me para jantar. A brincar com a Ângela, a filha da D. Cristina que trabalhava num restaurante, e com a Raquel, a irmã do Pedro que era giro e tinha cabelos pretos. Quase que até já sentia a falta da D. Maria, a velha do rés-do-chão que estava sempre a controlar-nos.
 
Voltei algumas vezes àquele lugar e ainda hoje, uma vez por ano, passo em frente ao pátio que agora me parece ter muito menos vida e ser bastante mais pequeno. Ainda mais pequeno do que o hall onde, há 32 anos, deixei sozinho o telefone preto cujo número ainda sei de cor. 

10 comentários:

  1. O facto de eu ser transmontana, a viver no porto, deve explicar o eu gostar tanto de vir aqui ao teu cantinho! :)

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  2. Eu cresci a cerca de 40 lms de ti. Mas o teu relato trouxe-me tantas memórias...

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  3. aiiii.... até me deu um aperto no coração!

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  4. ohhh que bonito!
    Vila Real! Também me diz tanto.
    Cidade que tão bem me acolheu e de onde tenho tantas saudades.
    Um beijinho*

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  5. Gostei tanto do texto!! Fez-me imenso lembrar quando me mudei da minha primeira casa também, devia ter uns 12 anos e de vez em quando ainda lá passo também para matar saudades :) Obrigada pela tua visita e comentário ;)
    Bj S

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  6. No meu caso foi ao contrário...Passei a maior parte do meu tempo em Lisboa, e há quatro anos vim viver para Vila Real...

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  7. Nunca mudei de casa, mas desde os 18 anos que nao vivo na casa dos meus pais...primeiro ensino superior longe e depois o tabalho (um ano em cada lado,) ,,,mais tarde vim morar c o namorado....
    Deve ter doído mto mudar tão nova...

    www.margaridaflordaminhavida.blogspot.pt

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Deita cá para fora!