sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Sabemos tudo.


A Sofia é uma das minhas melhores amigas de infância. Estudou comigo no ciclo e, mais tarde, partilhamos quarto na faculdade. É do norte, como eu, e tal como eu, a vida profissional mandou-a para Lisboa.

No meio disso, foi para Madrid fazer um doutoramento, onde conheceu o Fernando. Sempre embirrei muito com espanhóis, mas o Fernando era o espanhol mais amoroso que conheci. Mais tarde, mudaram-se para Lisboa e tiveram dois filhos. Um com idade próxima do meu filho e outro um pouco mais velho.

O primeiro Natal da pandemia, em que ficamos todos impedidos de sair dos concelhos, passei com o meu filho em casa deles. Foi também em casa deles, ali perto do Campo Pequeno, que assistimos a alguns concertos privados. O Fernando sabia tocar vários instrumentos e passou esse gosto para os meninos. Era lindo ouvi-los tocar. A Sofia fazia vídeos com os três e mandava para a família que estava longe. Também cheguei a receber alguns. Acho que o último foi "Sunday Bloody Sunday", dos U2.

A última vez que estive lá em casa, falámos sobre as obras que estavam a pensar fazer e dei a minha opinião sobre uma bancada extra na cozinha e uma parede que tinha de ser deitada abaixo. O Fernando cozinhava muito bem. A Sofia fazia uma mousse de chocolate muito boa e gostava de comprar arte em leilões. O Fernando nem sempre compreendia as aquisições mas, ainda assim, olhava para elas com carinho e para a Sofia com um brilho nos olhos, enquanto ela explicava o inquestionável valor das obras. Eu olhava para eles com admiração porque via ali muito amor. 

Rimos muito por causa de um José de Guimarães que o Fernando achava que parecia um lagarto, mas que a Sofia tinha dado os olhos da cara. Eu disse ao Fernando que era um ótimo investimento, ainda que eu também achasse que parecia um lagarto. O Fernando riu. A Sofia riu. Eu também. Rimos todos muito. Rimos tudo.

À tarde fomos andar de skate com os miúdos nos jardins do Campo Pequeno. O Fernando gostava de redes sociais, a Sofia não ligava muito, mas ela dizia que se divertiam muito os dois a ler o Caco. A Sofia não estava tão familiarizada com as parvoíces que por vezes aqui comento, mas o Fernando dava aulas de Comunicação na faculdade, por isso, às vezes, era ele - o espanhol - a explicar à Sofia quem eram as pessoas de que eu estava a falar, o que não deixava de ter alguma graça.

Nesse verão vieram almoçar cá a casa. A Sofia trouxe a mousse que faz muito bem e lembro-me que fiz uns cubos de gelo, com flores lá dentro, para refrescar a garrafa de vinho e que ficaram lindos na mesa do terraço. Ficamos de marcar outra data para lá irmos. O verão passou, veio o Natal e passou mais um verão.

Pensei várias vezes em ligar-lhes, mas hoje era isto, amanhã era aquilo e o tempo vai escorrendo entre os dedos. 

Esta manhã, a Sofia adicionou-me a um grupo de whatsapp chamado "Fernando". Não liguei. Achei que ela teria feito alguma aselhice sem querer.

Minutos depois chegou a mensagem: "O Fernando faleceu ontem à noite".

Liguei-lhe, ainda com as mãos a tremer e a querer acreditar, com muita força, que não passava tudo de uma nabice qualquer. Como se, por magia, a regressão daquela tragédia dependesse da intensidade que eu incutisse ao meu pensamento.

A Sofia chorou. Eu chorei. Choramos muito. Choramos tudo. 

O Fernando adoeceu no início deste ano. Seguiu-se todo o inferno desta doença que conheço tão bem. Faleceu ontem à noite, em casa, acompanhado da família e dos filhos.

O espanhol mais amoroso que conheci partiu e eu não me despedi dele.

A minha amiga passou por este calvário sozinha, durante quase um ano, e eu em nada ajudei.

Tudo porque o tempo vai escapando pelos dedos, ainda que a vida continue a lembrar-nos que fazemos muito pouco com ele.

Eu sei. A Sofia sabe. Sabemos todos. Sabemos tudo.